quinta-feira, 29 de novembro de 2007

...continua...

Voltou a trabalhar no que estava fazendo e esse comportamento me intrigou. Ele não tinha achado nem um pouco estranho minhas respostas. Isso não era freqüente.O mais comum era cenas de espanto das mais variadas. Uma vez, me lembro, uma moça saiu gritando, e teve aquele cara que rachou de dar risada comigo. É um momento tenso, esse. Tem lugares que acomodam melhor a cabeça e tem outros que é mais difícil. Já estive em realidades que não conseguia me lembrar de nada do que eu era, ou serei. Nem meu nome eu me lembrava, foi então que pedi para me darem um nome e meu cicerone fez: Ananta. Ele era grego, ou falava grego muito bem, não sei. Essas questões de língua eu só consigo reconhecer quando é realmente uma questão. Fora isso eu entendo todo mundo e todo mundo me entende não importa o mundo que estou, entende? Mas dá pra saber, às vezes, ou ter uma idéia a língua que a pessoa está usando. Este senhor era um sábio e viajei muito com ele e por mais que ele me falava seu nome, eu nunca conseguia gravar. No momento em que ele dizia, eu já esquecia. Então o renominei: Alef. Quando o encontrei pela primeira vez foi numa biblioteca antiga, de pedra, muito fria, que fedia a mofo e couro. Ele usava um hábito de monge e estava debruçado num livro com capa de madeira e metal que devia pesar muito. Quando me viu ele pulou pra trás, usando o castiçal numa mão e uma cruz na outra, apontando os dois pra mim. “Sou de Deus!” ele dizia e repetia. Eu disse “tudo bem, não ligo pra isso” e ele parou, com a dúvida superando o medo. Ele tinha um rosto meio infeliz, mas seus olhos brilhavam. É interessante notar como cada realidade tem a ordem de aparência diferente. É como comparar a pele de um europeu com a pele de um brasileiro. O europeu tem a pele fina, sempre limpa, apesar de suada e vermelha. Já o brasileiro tem a pele calejada, por mais cuidado que tome. A aparência que as pessoas tomam fala muito do mundo delas. Eu gosto dos bonitos. Por instinto eu aprendi que um corpo bem alinhado, com expressões sutis e suaves, boa aparência e aromas agradáveis têm estreitíssima ligação com um contato civilizado e boa inteligência. Alef trazia tudo isso nos olhos, apesar do seu corpo feder, expelir um óleo sujo e ter rugas ásperas de tristeza. Ele me contou que estava trabalhando numa tradução e não quis falar muito. Estava curioso com a minha presença ali. Fui aos poucos descobrindo sobre seu tempo, que hoje eu sei catalogar no tempo linear. Ele era um monge num monastério da idade média, em plena inquisição, e copiava obras que tinham sido condenadas, no escurão da noite, tendo um castiçal e um crucifixo para se iluminar. A sua luz era inegável. Eu passava os olhos nos seus textos carcomidos. Alguns com aparência de terem sido resgatados de uma fogueira, outros mal davam para entender as letras pálidas que ainda estavam presas nas folhas. Eu fiquei muito tempo visitando Alef na sua biblioteca, convivendo com aquela história cheia de quiprocós e tropeços, até um dia que não consegui encontra-lo mais. Por mais que eu tentasse, nunca mais entrei naquela biblioteca de pedra. Foi só nesta realidade que eu fui entender a história que Alef pesquisava: a vida de Jesus. Me lembro bem de mapas, inscrições em tumbas, árvores genealógicas e várias outras informações que até parece outra história. Até parece, não. É. Às vezes é muito difícil de reconhecer as histórias, porque muda muito de uma realidade para outra; uma história se estende pelas realidades e tem sempre muitos lados, não é uma verdade concreta. Bom, nada é. Muito menos as pessoas. É incrível a ausência de vilões e mocinhos nas histórias por aí. Quando hoje eu vejo nos filmes, estranho muito o maniqueísmo e fico com a impressão é que o contador teve preguiça de contar o outro lado e só contou um. Já conheci heróis que , quando encontrei, estavam sentados na beira do caminho, chorando de medo ou de dor. Já vi grandes gênios se atrapalhando com suas próprias emoções. Somos seres multifacetados demais para termos uma só versão, e isso inclui ocupar uma única realidade. Todas as possibilidades de existência não cabem num único mundo, eu acho. As histórias fazem um caminho entre esses mundos internos das pessoas. Dá pra entrar numa história através de outra história. Não é que uma está dentro da outra, mas, uma corta a outra e segue para outro caminho, outro mundo. Quando um evento é muito forte, ele abala muitos caminhos e eles se embaralham. Tudo muda e quem está viajando, pode ficar perdido. Como eu fiquei. Me perdi por aqui e não sei mais como sair. Bom, estou procurando a porta.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Diário de uma Viajante



Eu deveria ter ido à aula naquele dia. Ia ter matéria nova, mas decidi ficar em casa porque estava sentindo que a minha perna não estava respondendo normalmente, como se eu estivesse num lugar e ela em outro. Pra não me arrebentar, resolvi ficar parada e acertar isso. Tive fome e preguiça de fazer comida, ao mesmo tempo. São duas coisas que, se batem juntas na gente, não se desvia de nenhuma; lutei com a fome e depois com a preguiça de fazer qualquer coisa. Da fome eu perdi, mas acabei tendo uma vitoriazinha sobre a preguiça que eu resolvi comemorar com uns ovos mexidos. Comi e fiquei ouvindo o tempo. Um pássaro contava alguma coisa enquanto alguém gritava instruções para outro alguém mais distante... Uma máquina que podia ser doméstica, uma panela cozinhando, um zumbido de uma nota só, um choro de criança chata... Resolvi deixar aquele mundo onde eu não era nada e entrei na minha parede, sem saber onde eu ia parar. Foi bom quando aquele chorinho de criança sumiu dos meus ouvidos. Passado a sensação incômoda de atravessar a parede, o que é sempre meio ruim, veio logo uma brisa de outro mundo, com cheirinho de diferente, perfume que sempre me agradou. Sempre atravesso de olhos fechados porque gosto de ser surpreendida pela nova imagem. Isso já me deu muitos problemas. Uma vez levei uma bolada no nariz porque estava no meio de uma pelada de moleques de rua. Fiquei dias sem respirar direito, com aquela sensação de choro no rosto. Nesse dia dos ovos mexidos eu atravessei para uma colina ou campo, sei lá o que era aquilo. Sentei ali, na grama, no calorzinho do sol porque ventava meio frio e eu, pra variar, não estava agasalhada. Mas é só o primeiro impacto, quando a mente diz que é estranho e diferente e por isso devemos dar um passinho para trás e não se atirar radicalmente. O frio é isso, um resto de medo que ainda não foi dominado do desconhecido. Mas não me preocupo com ele, sei que está ali pra me defender, como autopreservação; e um medinho é sempre bom pra aumentar a emoção. Sentei naquela grama pra deixar que minha existência seja aceita naquele mundo, como a gente faz com os gatos e com pessoas selvagens, a gente espera que se acostumem com a nossa presença. Aproveitei pra olhar em volta e ver se estava em algum lugar ou era só nada mesmo onde eu fui parar, quando notei que todos os sons tinham ido embora, menos o zumbido de uma nota só. Fiquei curiosa e fui arás do som. Podia ser um bicho,ou qualquer outra coisa. Passei um morrinho e atrás do morro vi uma monstruosidade de um avião, ou nave, mais parecia uma nave mesmo, meio enferrujada parecia, ou a cor dela era aquela mesmo e tomava muitos metros do chão e estava como que enterrada parcialmente e me ocorreu que tivesse caído do céu. Era uma visão impressionante, porque eu sabia que era uma máquina de voar, porque essas coisas a gente sente no coração da lógica, mas não compreendia como uma coisa daquelas podia levantar dali, já que parecia tão incrivelmente pesada. Eu não via porta ou janela, não tinha roda nem turbina nem hélice, mas uma infinidade de placas de metal velho, tubos retorcidos e coisas assim, que não me davam a idéia se era daquele jeito mesmo ou era alguma coisa que não tinha dado certo de ser, se é que fui clara. Uma coisa era certa, o zumbido vinha dali daquela coisa. Fui arrodeando para chegar perto do que zumbia , na esperança de ter um pedacinho maior de entendimento, porque os pedaços que eu já tinha não estavam se encaixando. Numa fresta do relevo daquela coisa eu vi algo que se mexeu. Voltei na hora. Parecia uma carapaça de um bicho grande. Meu coração avisando perigo, disparou o alarme e eu comecei a ficar quente. Tentava decodificar a imagem vista mas era pior, porque começava a imaginar a parte oculta da foto, tentando completar para ver o que não tinha visto; uma mania do cérebro. O que eu imaginava não estava fazendo o alarme diminuir e o som do retumbar no meu peito já estava subindo pras orelhas quando o zumbido parou. Minha curiosidade foi mais rápida que meu bom senso e instintivamente, olhei. Era uma pessoa. Estava agachado e levantou, tirando um capacete da frente do rosto que parecia com aqueles de soldador. Seu rosto tinha uma atenção inteligente e se movia com a desenvoltura de quem sabia o que estava fazendo. Entendi que ele estava consertando aquilo. Quando ia mudar de ângulo ele me viu. Não pareceu se assustar. Ficou uns segundos me olhando, e eu naquela de “me mostra qual a sua reação para eu saber qual será a minha abordagem”, até que ele:
-Quem é você?
-Uma viajante, como você.
-Ah. E da onde você vem?
-De outro tempo.
-E viajou no quê?
-Não uso máquina, elas me confundem.
-Sei. (Pareceu se aborrecer) É o que todos acham.