quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Diário de uma Viajante



Eu deveria ter ido à aula naquele dia. Ia ter matéria nova, mas decidi ficar em casa porque estava sentindo que a minha perna não estava respondendo normalmente, como se eu estivesse num lugar e ela em outro. Pra não me arrebentar, resolvi ficar parada e acertar isso. Tive fome e preguiça de fazer comida, ao mesmo tempo. São duas coisas que, se batem juntas na gente, não se desvia de nenhuma; lutei com a fome e depois com a preguiça de fazer qualquer coisa. Da fome eu perdi, mas acabei tendo uma vitoriazinha sobre a preguiça que eu resolvi comemorar com uns ovos mexidos. Comi e fiquei ouvindo o tempo. Um pássaro contava alguma coisa enquanto alguém gritava instruções para outro alguém mais distante... Uma máquina que podia ser doméstica, uma panela cozinhando, um zumbido de uma nota só, um choro de criança chata... Resolvi deixar aquele mundo onde eu não era nada e entrei na minha parede, sem saber onde eu ia parar. Foi bom quando aquele chorinho de criança sumiu dos meus ouvidos. Passado a sensação incômoda de atravessar a parede, o que é sempre meio ruim, veio logo uma brisa de outro mundo, com cheirinho de diferente, perfume que sempre me agradou. Sempre atravesso de olhos fechados porque gosto de ser surpreendida pela nova imagem. Isso já me deu muitos problemas. Uma vez levei uma bolada no nariz porque estava no meio de uma pelada de moleques de rua. Fiquei dias sem respirar direito, com aquela sensação de choro no rosto. Nesse dia dos ovos mexidos eu atravessei para uma colina ou campo, sei lá o que era aquilo. Sentei ali, na grama, no calorzinho do sol porque ventava meio frio e eu, pra variar, não estava agasalhada. Mas é só o primeiro impacto, quando a mente diz que é estranho e diferente e por isso devemos dar um passinho para trás e não se atirar radicalmente. O frio é isso, um resto de medo que ainda não foi dominado do desconhecido. Mas não me preocupo com ele, sei que está ali pra me defender, como autopreservação; e um medinho é sempre bom pra aumentar a emoção. Sentei naquela grama pra deixar que minha existência seja aceita naquele mundo, como a gente faz com os gatos e com pessoas selvagens, a gente espera que se acostumem com a nossa presença. Aproveitei pra olhar em volta e ver se estava em algum lugar ou era só nada mesmo onde eu fui parar, quando notei que todos os sons tinham ido embora, menos o zumbido de uma nota só. Fiquei curiosa e fui arás do som. Podia ser um bicho,ou qualquer outra coisa. Passei um morrinho e atrás do morro vi uma monstruosidade de um avião, ou nave, mais parecia uma nave mesmo, meio enferrujada parecia, ou a cor dela era aquela mesmo e tomava muitos metros do chão e estava como que enterrada parcialmente e me ocorreu que tivesse caído do céu. Era uma visão impressionante, porque eu sabia que era uma máquina de voar, porque essas coisas a gente sente no coração da lógica, mas não compreendia como uma coisa daquelas podia levantar dali, já que parecia tão incrivelmente pesada. Eu não via porta ou janela, não tinha roda nem turbina nem hélice, mas uma infinidade de placas de metal velho, tubos retorcidos e coisas assim, que não me davam a idéia se era daquele jeito mesmo ou era alguma coisa que não tinha dado certo de ser, se é que fui clara. Uma coisa era certa, o zumbido vinha dali daquela coisa. Fui arrodeando para chegar perto do que zumbia , na esperança de ter um pedacinho maior de entendimento, porque os pedaços que eu já tinha não estavam se encaixando. Numa fresta do relevo daquela coisa eu vi algo que se mexeu. Voltei na hora. Parecia uma carapaça de um bicho grande. Meu coração avisando perigo, disparou o alarme e eu comecei a ficar quente. Tentava decodificar a imagem vista mas era pior, porque começava a imaginar a parte oculta da foto, tentando completar para ver o que não tinha visto; uma mania do cérebro. O que eu imaginava não estava fazendo o alarme diminuir e o som do retumbar no meu peito já estava subindo pras orelhas quando o zumbido parou. Minha curiosidade foi mais rápida que meu bom senso e instintivamente, olhei. Era uma pessoa. Estava agachado e levantou, tirando um capacete da frente do rosto que parecia com aqueles de soldador. Seu rosto tinha uma atenção inteligente e se movia com a desenvoltura de quem sabia o que estava fazendo. Entendi que ele estava consertando aquilo. Quando ia mudar de ângulo ele me viu. Não pareceu se assustar. Ficou uns segundos me olhando, e eu naquela de “me mostra qual a sua reação para eu saber qual será a minha abordagem”, até que ele:
-Quem é você?
-Uma viajante, como você.
-Ah. E da onde você vem?
-De outro tempo.
-E viajou no quê?
-Não uso máquina, elas me confundem.
-Sei. (Pareceu se aborrecer) É o que todos acham.

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